quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:

- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

Machado de Assis

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Desvio de Rumo

Da fagulha eu quero fazer
Virarem externas 
As vontades do ser.

Não só nos sonhos
Ou antes de dormir,
Mas também ao acordar
E até quando existir
Essa força que me leva
A por em prática os desejos
Do meu corpo
E do que ele atrai,
Do que me rodeia e
Do que se esvai.

Dar forma ao que 
Ainda não é.
Me tornar o que eu quiser.
Romper o inerte,
Desviar do que é rumo.
Inverter a gente inverte,
Se não der, eu até sumo.
E assumo o risco
De desagradar sua esperança,
Pois não tenho nem um trisco
Dessa sua temperança.

Pois tudo o que sou é o que
Antecede o que vou me tornar.
Então já sou imensidão
Só observando o mar.

Raíssa Portela

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

O apanhador de desperdícios

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
Manoel de Barros

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Eu gosto de ser quem observa
O narrador dos outros
Quem vive à espera
Dos olhares inesperados
Que contam as histórias
Que tanto me interessam

Porque eu não tenho história
E nem quero ter

Quero apenas ser capaz
De sempre me admirar
Com os detalhes que me aparecem
E fazer deles minha missão
Torná-los grandes
Não só a mim
Como também a quem os possui
Para que assim eles parem

A corrida que praticam

E possam ver
Que há vida querendo
Sair deles a todo tempo

Raíssa Portela

O meu olhar é nítido como um girassol

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Meu combustível é a leveza

    Acredito em coisas que não existem. Meu corpo é encantado. E fica ainda mais, quando trilho as possibilidades invisíveis. Não é que eu não tenha, pelo menos, uma opinião formada. Formadas, não tenho mais do que dúvidas. E a vida curta que levamos não me dá tempo pra decidir. As opções que me apresentam, também, são muito poucas para me impedirem de criar outras. E o meu combustível é a leveza. Não consigo deixar de admirar a diversidade do mundo. E isso inclui ouvir sem que doa, opiniões que me pareçam estranhas. Porque sempre procuro pela beleza, desculpe. Acho que precisamos ser mais tolerantes e não querermos impor nossas opiniões ao resto do mundo a todo custo. Tentar aprender a ouvir, que disso o respeito é consequência. É preciso calma. Calma. O amor é a revolta.

Raíssa Portela

terça-feira, 12 de julho de 2016

Soneto da Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes